O novo director do Centro Galego de Arte Contemporânea sente-se confortável como primeiro estrangeiro a gerir a instituição com sede em Santiago de Compostela. E gosta de trabalhar num edifício desenhado pelo arquitecto Álvaro Siza - "O meu gabinete tem mais espaço do que o do João Fernandes no Museu de Serralves", graceja o curador portuense
É um museu com a assinatura de Álvaro Siza, e isso vê-se nos maiores como nos mais pequenos detalhes: primeiro, e visto de fora, na elegância com que o edifício moderno (inaugurado em 1993) emparceira com o velho Convento de S. Domingos de Bonaval (século XVII); lá dentro, pelo conhecido jogo das superfícies brancas com as linhas de fuga e as inesperadas fontes de iluminação (como as famosas mesas invertidas).
No gabinete do director do Centro Galego de Arte Contemporânea (CGAC), continua a respirar-se espaço Siza. Não apenas pela amplitude e iluminação, também pela presença dos candeeiros e mobiliário desenhados pelo arquitecto português - em imprevisto diálogo com uma secretária transparente de Norman Foster, por exemplo.
"É muito agradável trabalhar aqui; primeiro, porque tenho um gabinete muito maior do que o do João Fernandes; o arquitecto foi mais generoso com o director do CGAC do que com o do Museu de Serralves", graceja Miguel von Hafe Pérez (n. Porto, 1967), que desde o dia 1 de Novembro é o primeiro director estrangeiro do centro de arte sediado em Santiago de Compostela.
O historiador, crítico e curador de arte recebe-nos no seu novo local de trabalho no mesmo dia em que fazia a apresentação à comunicação social local da sua primeira programação para o CGAC. Na mesa duma conferência de imprensa bastante concorrida, estivera ladeado pelo conselheiro de Cultura e Turismo da Junta da Galiza, Roberto Varela, que a seguir, em declarações ao P2, realçou as circunstâncias inéditas que tinham levado à nomeação do comissário português: pela primeira vez na história do CGAC, o director fora escolhido através de um concurso internacional e por decisão de um júri de especialistas do sector. "Estou muito orgulhoso que tenha sido um português o escolhido, e muito satisfeito também com a programação que ele fez para este ano", disse o responsável do PP galego.
Ao apresentar Espectral, uma selecção de obras das colecções do centro (que para além do acervo próprio inclui também o da Arco, feira de arte de Madrid) a abrir um painel de exposições e outras iniciativas que irão marcar o ano, Pérez disse ao que ia: "Interessa-me lançar um olhar sobre a modernidade e mostrar trabalhos que nos levem a reflectir sobre o mundo contemporâneo, e, com isso, recuperar o lugar que o CGAC já teve no circuito das artes."
Cá fora, Natalia Poncela López, crítica e redactora-chefe da influente revista Art Notes (o número de Fevereiro-Março publica uma entrevista com Miguel Pérez), que assegura uma curiosa ponte entre a cena artística da Galiza e a de Nova Iorque, dava voz à grande expectativa com que o desempenho do comissário português está a ser seguido em Santiago, na Galiza, e em Espanha em geral. "É a primeira vez que o CGAC tem uma direcção profissional escolhida por profissionais do mesmo ofício. Isto significa que o Miguel vai poder concretizar o seu projecto sem qualquer interferência política, o que dá muita independência, mas, ao mesmo tempo, muita responsabilidade." Natalia López fez depois eco daquilo que Roberto Varela tinha também manifestado ao P2: a Galiza espera que o curador português recupere a relação que o CGAC já teve com a população e as instituições locais e simultaneamente consiga reatar o seu papel no circuito internacional, perdido nos últimos anos.
Miguel Pérez está consciente do que está em jogo. Diz ter aceitado o desafio de concorrer à direcção do CGAC, em primeiro lugar, pela importância que a instituição continua a ter no panorama artístico da Galiza e de Espanha, algo que ele conhece especialmente bem pelas experiências que já teve como comissário na Bienal de Pontevedra e no Centro de Arte Santa Mónica, em Barcelona, por exemplo. "Senti que poderia trazer algo de novo. Sempre me fez alguma confusão que o CGAC, pela sua dimensão simbólica, por ter sido dos primeiros centros de arte moderna na Espanha democrática, por ser um projecto bem conseguido do Álvaro Siza, por ter um orçamento confortável, o que não é muito normal em instituições da mesma dimensão, estivesse a viver um certo apagamento", diz.
O centro galego tem um orçamento anual de quatro milhões de euros, com 1,3 milhões para programação e meio milhão para compras - números que não são muito diferentes dos de Serralves no que diz respeito à programação, nota Pérez. No ano passado, contou 60 mil visitantes, um número relevante, se for relacionado com uma cidade de apenas 80 mil habitantes, mas já não o é tanto se tivermos em conta a existência de uma importante comunidade estudantil e universitária, e, mais ainda, de um fluxo turístico que faz de Santiago de Compostela "uma cidade maior na sua dimensão simbólica do que na física".
Reunir sinergias e tirar melhor partido destas circunstâncias é o objectivo do novo comissário, e o facto de 2010 ser um ano xacobeo (ano santo, pelo facto de o 25 de Julho, dia de S. Tiago, calhar ao domingo) vem potenciar essa aposta - uma das exposições anunciadas, A Cidade Interpretada (17 de Setembro a 28 de Novembro), é um projecto de arte pública associado ao xacobeo, evento que tem para a Galiza uma importância equivalente à do Porto 2001, realça Pérez (que foi o responsável pelo sector das Artes na Capital Europeia da Cultura).
O novo director nota ter sido muito bem acolhido em Santiago e na Galiza. "Senti-me essencialmente bem recebido tendo em vista ser estrangeiro, mas, apesar de tudo, trata-se de um estrangeiro dissimulado, e com uma certa proximidade", diz Miguel Pérez, para cuja decisão de concorrer ao CGAC contou também o facto de ter a oportunidade de dirigir uma instituição de arte de relevo internacional a pouco mais de 200 quilómetros de casa. "E esta não é uma oportunidade que nos surja todos os dias!", acrescenta.
O facto de chegar a Santiago vindo de fora dá-lhe também um distanciamento que é importante numa terra onde "tudo é esmiuçado até à exaustão" e amplificado na medida exacta da quantidade dos meios de comunicação que aí existem, nomeadamente os muitos jornais regionais que há em cada cidade.
A arquitectura de Álvaro Siza, à época da inauguração, chegou a ser objecto de estranheza e de alguma polémica, o agora já não acontece. De facto, até pela cor escurecida que o granito foi ganhando com o tempo, irmanando-o cada vez mais com o vizinho Convento de S. Domingos de Bonaval, o museu desenhado pelo arquitecto português "está já perfeitamente integrado no imaginário urbano e social" de Santiago de Compostela, nota Pérez.
Os espaços interiores do museu não deixam, contudo, de manter um carácter desafiador para os artistas que aí expõem. É isso que o novo director quer também potenciar ao longo do seu mandato de cinco anos. Um exemplo disso será já a exposição de Gilberto Zorio (parceria com o MAMbo - Museu de Arte Moderna de Bolonha), uma referência da arte povera italiana, que aí será apresentada entre 16 de Abril e 27 de Julho, em assumido diálogo com a arquitectura de Siza. Outra grande aposta da programação do CGAC para 2010 será a exposição Afro-Modern: Jornadas através do Continente Negro (16 de Julho a 10 de Outubro, em colaboração com a Tate Liverpool), a "mostrar como as comunidades e os artistas africanos também tomaram parte na construção da modernidade", diz Pérez. Uma nota ainda para a extensão à Galiza, no Outono (22 de Outubro a 16 de Janeiro), da exposição Tempo Suspenso, das gémeas inglesas Jane & Louise Wilson, que actualmente se pode ver na Gulbenkian. "Aqui ainda vai ficar melhor do que está em Lisboa, por causa da relação com o espaço do Siza", promete Miguel von Hafe Pérez.
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Público